Domingo nós tivemos o primeiro dia de uma das provas mais importantes para todos os alunos do Brasil que concluem o ensino médio, o famoso Exame Nacional do Ensino Médio, mais conhecido como Enem. A prova constitui em perguntas de diversas áreas, a fim de testar os conhecimentos dos alunos, e todos os anos há um tema diferente e atual abordado na parte de redação, onde os alunos precisam expressar a sua opinião. O tema deste ano foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
O tema vem de frente ao objetivo do ENEM de trazer assuntos capazes de oferecer grandes reflexões, não apenas para os jovens, mas para todos nós que posteriormente discutimos sobre o tema com eles, visto que é uma forma de levantar questões importantes a serem debatidas e repensadas na nossa sociedade.
O cuidado com a cuidadora exausta
Após a divulgação do Censo 2022, percebemos claramente o quanto estamos sofrendo uma transição demográfica rápida, onde a população está envelhecendo em larga escala e em pouco tempo. Isso nos faz pensar que cada vez mais necessitamos de pessoas para cuidar, além das crianças, também das pessoas mais velhas. E como sabemos muito bem, essa é uma tarefa capaz de levar uma pessoa à exaustão, dependendo do contexto.
Cuidar é uma tarefa milenar que ganhou diversos tipos de auxílio ao longo do tempo. Atualmente, as crianças e as pessoas idosas têm pessoas especializadas para realizar acompanhamento. Temos espaços e serviços, como o próprio Terça da Serra, para receber e acolher as pessoas que precisam de cuidados. Contamos também com a tecnologia, que é capaz de nos auxiliar em vários aspectos do cuidado, mas isso não faz com que a tarefa de cuidar seja menos exaustiva.
Cuidar permanece sendo uma atividade exaustiva, devido ao envolvimento emocional relacionado, as expectativas que o cuidado gera (garantir que o bebê pare de chorar e durma, garantir que a pessoa idosa se mantenha calma), além do desgaste físico de gerir o cuidado de outras pessoas e acumular isso com as outras tarefas da vida, onde as mulheres possuem uma especialização – infelizmente – natural para isso, visto que são as cuidadoras oficiais da família.
O homem, durante todos os séculos, sempre foi o gênero predominante que tem o dever de se preocupar com o cuidado da casa, mas de uma forma mais distante e com maior envolvimento em seu trabalho externo, a fim de garantir uma renda. Nossa sociedade também baseia-se em uma cultura de que o homem precisa possuir um caráter mais rígido, a fim de aguentar as adversidades da vida, e assim não sobra muito espaço para o cuidado, visto que é uma tarefa que exige atenção, sensibilidade, escuta, entre outras habilidades psicológicas e emocionais que ficam condicionadas ao gênero feminino.
Para quem tem interesse em se aprofundar mais nesse tema, deixamos a indicação do livro “Aurora: O despertar da mulher exausta”, de Marcela Ceribelli.
De quem é a culpa do cuidado? Ou da falta dele?
A nossa sociedade tem um costume muito grande de justificar as falhas de nossa organização social, mal resolvida diante de uma colonização baseada na escravidão e na extração de matérias-primas para uso de terceiros, através da “culpa”. Somos uma sociedade que baseia tudo no erro da própria pessoa, sem ter em mente que a contextualização do seu ambiente, das suas vivências, é essencial para compreender aquele cenário em particular.
Nesse sentido, essa é uma das maiores sobrecargas que a mulher carrega diante da responsabilidade do cuidado: a culpa! Todas as mães que nós conhecemos sentem culpa! Por mais que elas dediquem a maior parte do tempo das suas vidas para os filhos, mesmo que elas sejam capazes de fazer os maiores sacrifícios, sempre haverá um olhar julgador da sociedade em acreditar que nenhum esforço feito é o suficiente. Gosto de dizer que “nasce uma mãe, nasce uma culpa”.
Essa culpabilização já não ocorre da mesma forma no gênero masculino, pois compreende-se que o homem faz o esforço necessário ao sair de casa e trabalhar para sustentar a sua casa. Ainda se enaltece quando esse homem faz tarefas tão cotidianas para as mulheres, como cuidar da casa ou dos filhos. Nesses casos, o homem é reconhecido como um grande ser evoluído da sua espécie, alguém capaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo, capaz de se envolver emocionalmente com a sua família e prover mais do que apenas condições financeiras, mas uma boa relação.
Devemos ter em mente que no Brasil, temos diversos estudos e pesquisas que comprovam que as mulheres que sustentam a própria casa, sem ajuda de alguém do gênero masculino, são uma grande maioria! Elas possuem o seu trabalho formal para prover as condições financeiras para a família, acumulam ainda os cuidados da casa, dos filhos, quando é o caso, e são capazes de ainda oferecer suporte e cuidados para os seus familiares mais velhos, caso haja a necessidade. Afinal, como podemos não levar em consideração a disparidade de divisão de tarefas, baseada no gênero?
A invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil
A mulher não enfrenta apenas o cotidiano de uma vida sobrecarregada de trabalho e de culpa, mas também a invisibilidade de todos os seus esforços, onde aquela capaz de se posicionar e expressar as suas dores é vista de diversas formas: histérica, como a psicanálise entendia a mulher que expressava seus desejos; revoltada, como a política entende a mulher que se posiciona e defende os seus próprios direitos; entre muitas outras formas deturpadas de enxergar uma mulher que na verdade, só está pedindo ajuda.
Devemos ter em mente que o cuidado, seja ele um trabalho formal ou informal, exige um esforço psicológico, físico e emocional muito grande. Envolve diversos sentimentos e uma conexão muito intensa entre o cuidador e a pessoa cuidada, onde em muitos casos, exercer essa função de forma solitária faz com que elevemos o nível de estresse à exaustão.
Existe uma concepção estruturada na nossa sociedade de que “o homem não foi feito para cuidar da casa”, mas a mulher também não foi, nós não somos seres programas que viemos ao mundo destinados a cumprir determinadas funções, a sociedade e o nosso entorno são os responsáveis por moldar o nosso caráter. Por isso a discussão atual da infância livre de determinações de gênero, onde a menina brinca de casinha e o menino brinca de dirigir carro e luta.
Somos nós os responsáveis por criar homens violentos e mulheres reprimidas! Onde atualmente é cada vez mais urgente sermos capazes de mudar essa mentalidade a nível global, a fim de construir uma sociedade mais justa e igualitária para todos.
A construção de uma educação popular do cuidado
Na nossa redação para o ENEM, concluiríamos com a apresentação da melhor forma de combater esse desafio apresentado: construir uma cultura do cuidado. O que significa cuidado? O que significa cuidar de alguém? O que constitui cuidar de uma pessoa? Quem é responsável pelo cuidado? Como é possível cuidar de uma pessoa?
A construção de uma educação popular é capaz de revolucionar a forma como enxergamos o cuidado, a fim de apresentar desde a infância a participação de todas as crianças, independente do gênero, nas tarefas da casa, nas brincadeiras sem distinção dos gêneros ou dos papéis sociais a serem desempenhados, a fim de garantir que possamos construir uma cultura mais solidária e mais consciente de que todos somos responsáveis pelo cuidado com as nossas famílias.
Essa educação é capaz de ensinar aos meninos que eles podem chorar, as meninas podem ser o que elas quiserem e não apenas ter que cuidar da sua família, promover a solidariedade entre os gêneros, a fim de construir homens e mulheres menos reprimidos e mais realizados, o que com certeza será capaz de refletir em um cuidado muito mais humanizado, e mais bem dividido.
No Blog do Terça da Serra, trazemos esses e muitos outros temas atuais para garantir uma educação popular sobre o envelhecimento, a fim de garantir que o máximo de pessoas tenham acesso a um material tão rico, sem qualquer custo, com foco na socialização do conhecimento da área, de forma clara e de acesso para todos. Acompanhe outras matérias que nós temos aqui no blog!